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Um partido que se apresenta como "liberal" carrega consigo uma herança teórica exigente. Liberalismo não é um adesivo de campanha, mas uma tradição intelectual que atravessa séculos de disputa contra o arbítrio, contra governos personalistas e contra qualquer forma de poder político concentrado. Quando se olha para o Partido Liberal brasileiro, a distância entre o rótulo e a doutrina torna-se difícil de ignorar. O termo liberal virou mera peça marketing, deixando de fora qualquer arremedo de substância liberal.


Um pouco de liberalismo para entender o debate

A tradição liberal clássica nasce como uma reação obstinada ao poder absoluto. John Locke escreve no século XVII para limitar os monarcas, não para fortalecê-los. Seu Segundo Tratado parte do pressuposto de que nenhum governante tem legitimidade moral para agir como dono da sociedade. O governo é limitado por direitos individuais anteriores a ele. Quando um governante abusa do poder e viola esses direitos, os cidadãos têm até o direito de resistência. É curioso observar como esse núcleo teórico casa mal com a defesa irrestrita de líderes personalistas, o culto à autoridade carismática e a tolerância a ataques às instituições. Um partido que se diz "liberal" e ao mesmo tempo incentiva ou normaliza práticas de deslegitimação do sistema eleitoral, das Cortes e da imprensa acaba se afastando da raiz do liberalismo lockeano.

Quando a discussão avança para o liberalismo do século XIX, surge John Stuart Mill com sua defesa vibrante da liberdade de expressão, do pluralismo e da individualidade. Mill não protege opiniões por afinidade política, mas por princípio. O valor da liberdade está no choque entre ideias, no debate aberto, na circulação do dissenso. Isso implica repúdio claro a ambientes de intimidação, campanhas sistemáticas de desinformação e ataques a opositores como inimigos do povo. Mill defenderia a crítica dura e a disputa vigorosa, mas jamais toleraria o esforço organizado para minar a esfera pública. Um partido que se apresenta como liberal, mas apoia movimentos que empobrecem o debate público, tornam a divergência uma ameaça e promovem perseguições a grupos específicos, contraria Mill do início ao fim.

O século XX aprofunda a visão liberal com Isaiah Berlin e seu conceito de liberdade negativa. Para Berlin, ser livre significa não ser interferido arbitrariamente. Isso vale tanto contra o Estado quanto contra maiorias mobilizadas e líderes que buscam poder ilimitado em nome de um suposto "povo". Berlin é explícito ao diagnosticar o perigo do populismo nacionalista, que transforma a vontade coletiva em ferramenta para esmagar direitos individuais. Quando um partido adota a retórica da unidade nacional para justificar o ataque a minorias, à imprensa ou a instituições que fazem controle de poder, ele rasga o princípio berliniano da proteção do indivíduo contra construções totalizantes.

Outra vertente importante é o liberalismo político contemporâneo. John Rawls, ao formular sua teoria, parte do pressuposto de que sociedades plurais só se mantêm estáveis quando instituições públicas são desenhadas para proteger liberdades básicas, garantir tratamento equitativo e impedir que maiorias imponham suas convicções particulares ao restante da sociedade. Rawls não escreve para agradar governos; ele esboça princípios para contê-los. Por isso, sua teoria serve como um teste simples: um partido que apoia explicitamente projetos de poder que desrespeitam direitos fundamentais, pressionam instituições de fiscalização e toleram discursos autoritários está em choque com o liberalismo rawlsiano.

É impossível fugir também da crítica ordoliberal do século XX, especialmente na Escola de Freiburg. Walter Eucken e Franz Böhm defendem que o Estado precisa atuar para criar uma ordem que impeça concentrações de poder, inclusive de poder político. Eles viam o nazismo como a prova histórica de que mercados só sobrevivem quando instituições democráticas e Estado de direito são robustos. Um partido que se define liberal deveria ser o primeiro a repudiar discursos de exceção, apelos ao fechamento institucional e ataques ao Judiciário. Seria incoerente se aproximar de movimentos que relativizam ou justificam aventuras autoritárias.

Sob qualquer prisma da tradição liberal, é inviável qualificar o PL com tal adjetivo.


Usos equivocados do liberalismo na política nacional

No Brasil, o uso do termo "liberal" virou um guarda-chuva amplo o bastante para abrigar desde defensores do livre mercado até adeptos do nacionalismo centralizador. A história recente do PL evidencia esse descompasso. O partido não apenas aderiu integralmente ao bolsonarismo, mas tornou-se sua principal plataforma institucional. Quando sua cúpula apoiou publicamente ataques reiterados ao processo eleitoral, relativizou agressões a jornalistas e legitimou narrativas questionadoras da lisura das instituições democráticas, distanciou-se progressivamente da tradição liberal. Ao invés de defender instituições independentes, o partido atuou para ampliar influência política sobre estruturas de Estado, especialmente durante o governo Bolsonaro, aproximando-se de práticas que tratam o poder público como instrumento de lealdade partidária.

Paralelamente, episódios amplamente noticiados pela imprensa envolvendo lideranças do partido, incluindo investigações sobre irregularidades no orçamento secreto, suspeitas de superfaturamento em emendas parlamentares e casos sob apuração relacionados a rachadinhas e uso indevido de verbas públicas, levantam questões sobre a compatibilidade entre o discurso liberal e práticas que desafiam os princípios de transparência e accountability. Um modelo liberal autêntico exige controle rigoroso do poder público e prestação de contas permanente, não apenas retórica de livre mercado em momentos convenientes.

Ao adotar o rótulo liberal apenas no plano econômico ou quando eleitoralmente vantajoso, mas sustentar alianças com práticas e discursos antipluralistas, o partido reforça o esvaziamento do conceito.

Liberalismo não é compatível com idolatria política. Liberalismo não é compatível com flexibilização de direitos fundamentais. Liberalismo não é compatível com qualquer flerte com autocracia.

Quando se analisa a doutrina liberal com um mínimo de rigor, o contraste fica evidente. A defesa da separação de poderes, da independência das Cortes, da liberdade de imprensa e dos direitos de minorias não é opcional para a tradição liberal. É a base. Seu fundamento. Do ponto de vista intelectual, não há como conciliar liberalismo com ataques sistemáticos ao funcionamento de instituições democráticas. Não há como conciliar liberalismo com discursos que relativizam violência política. Não há como conciliar liberalismo com projetos que concentram poder nas mãos de um líder supostamente infalível.


O liberalismo exige coerência

Se um partido deseja ser liberal, precisa assumir a carga filosófica do conceito. Isso significa defender liberdades civis mesmo quando elas favorecem adversários. Significa rejeitar enfaticamente projetos autoritários mesmo quando isso traz prejuízo eleitoral. Significa abraçar a crítica e a pluralidade, não demonizá-las. Significa fiscalizar o governo, não transformá-lo em chefe espiritual. Essa é a coerência mínima exigida por Locke, Mill, Berlin, Rawls e pela tradição liberal como um todo.

O debate público brasileiro ganharia muito se recuperasse o conteúdo sério da palavra liberal. Um partido que se apropria do rótulo, mas abraça práticas iliberais autoritárias, contribui para a confusão conceitual e para a erosão das garantias democráticas. O liberalismo real continua sendo uma doutrina desconfiada do poder, comprometida com a liberdade e inimiga declarada de qualquer aventura autoritária. Quem quiser usar esse nome, precisa honrar sua história.

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